Um passado da semana passada
Por aquela janela moldurada pelo gelo, olhando vagamente
para o movimento raso daquela entrada, que nunca foi tão calma como aquele dia.
Meus pensamentos se dividiam entre presente e passado. Naquele presente ele
estava ali, ainda dormindo como um anjinho. Mas olhando a neve derretendo
naquela janela de vidro, enquanto o sol nascia, me lembrava daqueles olhos.
Olhos esses que me prenderam na dimensão mais forte do meu próprio coração.
Conheci esse olhar em uma das minhas viagens de família feita sempre para o
mesmo lugar.
Me lembro de não estar com tanta vontade de ir,
porque sempre que íamos aviam motivos muito esquisitos para não sairmos de
casa. Minha vó essa, sempre dizia: “Isso não é hora de mocinha ficar na rua”.
Que horas eram? Deve se perguntar, exatas 20:00h no horário brasileiro do
sertão escuro e pacato.
Porém numa noite dessas, no descuido desapegado de
minha vó e sob a permissão de minha mãe, ficamos eu e minha irmã na rua com
minhas primas. Até que apareceu um colega que já conhecíamos, Sandro, e trouxe
consigo um outro colega, Reis.
Sabe aquele momento que você segura sua expressão
na mais pura paisagem, mas dentro de você parece que soltaram o borboletário? Foi
exatamente o que senti. E não era só porque ele tinha os olhos verdes, o cheiro
mais marcante, a mão macia, sem contar aquele sotaque sertanejo gostoso de
ouvir, e por jogar muito bem dominó. Era mesmo porque pareceu algo de alma.
Ele estendeu a mão para nos cumprimentar com aquele
ar de vergonha levada (risos)
“_ Opa, prazer Reis. ”.
Depois disso outras noites vieram acompanhadas de
risos e muita conversa. Me escondia com a desculpa de que estava jogando dominó
com meus tios, e assim passávamos da meia noite à beira da casa. Comecei a
notar que algumas cruzadas de olhar já não eram mais só para sacar meu jogo e
descobrir com qual peça eu estava nas mãos, mas sim para sacar se eu também o
desejava.
Um dia sem o dominó ficamos conversando na rua, mas
com vigias de cada 5 minutos, já tarde, aos gritos de minha avó para entrar, nos
despedimos. Levantamos da calçada de um jeito diferente, bati a poeira da calça
e fomos nos achegando para dar o “boa noite” de sempre. Mas aqueles olhos verdes
de anjo me olharam com um brilho que fez sua boca parece um imã a minha. Rápido
mais completamente inesquecível, nos beijamos.
Entrei levemente saltitando e disse a todos que ia
dormir só para que eu pudesse ter a privacidade de um quarto vazio, onde poderia
jogar para fora toda minha alegria e euforia de um beijo tão leve, único e
dele. Ficamos conversando metade da madrugada por mensagem. Sim SMS,
antigamente esse era nosso único meio de comunicação. Aquelas mensagens pagas
com um certo delay e a cada torpedo 0,25 centavos.
Me lembro desse dia como se fosse hoje. 8 anos se
passaram e ainda me lembro da nossa despedida a pôr do sol, numa pracinha de
madeira que tinha atrás da casa da minha avó. Perigoso e muito arriscado, mas
eu não me importava com o que podia acontecer. A viagem já estava em contagem
regressiva para acabar, e o que me restaria seria a lembrança daqueles lindos
olhos verdes roubando o reflexo do sol, e brilhando junto com os meus. Acariciar
seu rosto e beija-lo foi mais especial do que muitos encontros que vieram a
acontecer dentro desses 8 anos.
Até que outro encontro poderia colocar no “bolso”
esse tão marcante encontro. Dividida novamente com o presente e o passado, me
perdia. Porém dessa vez um passado certo que mais parecia semana passada.
Tempos atrás recebi mais uma vez um convite que já
negava a 5 anos. Que seria palestrar para os alunos de uma produtora musical em
Utah, Estado Unidos. Um convite e tanto para ser negado todos os 5 anos, mas
não era tão simples para mim. Meu maior receio era encontrar Reis, pois não sei
em qual parte dos meus pensamentos me perdi, mas Reis não morava mais no
Brasil. Por anos eu repeti minhas viagens de família para o mesmo lugar, sem a
mesma empolgação, pois alguns anos depois ele se mudou para EUA. Mais um
detalhe, Reis se casou.
Meu medo era encontrar ele em algum lugar. Mesmo
sendo tão grande esse pais, ou o estado onde eu iria repousar, meu medo era dar
de cara com a loucura de Reis e a minha de querermos ver um ao outro. Porque o
que ouve quando éramos adolescentes não era só mais caso, ou só uma paixão de
verão.
Só que não dava para rejeitar um convite desses por
um mero medo que si quer poderia acontecer. Então arrumei minhas malas e lá
estava no avião. Acredite ou não onde eu menos esperava ter medo, foi onde o
destino me criou uma cilada. De cabeça baixa colocando minha playlist do
spotify, sinto um perfume que me arrepiou a pele, e não porque era forte
demais, ou ruim, mas porque eu conhecia aquele cheiro. Ergui com muito medo
minha cabeça e repetindo em pensamento, “não pode ser, não pode ser”. E
desesperadamente era. Reis entrava no mesmo avião que eu, e para o mesmo destino,
Aeroporto Internacional John F Kennedy.
Fiz de tudo para que aquela poltrona me absorvesse e
me fizesse invisível. De nada adiantou, Reis com aquele olhar brilhante que só
não brilhava mais que seu anel dourado na mão esquerda, vinha sozinho na minha
direção. Me vinha inúmeras perguntas na cabeça: “Porque ele está sozinho?
Porque está vindo na minha direção? Esteve no Brasil e não se lembrou de mim?
Os olhos dele brilham assim sempre ou porque me viu? ”.
Todas ou pelo menos algumas daquelas perguntas
foram respondidas por ele mesmo sem que eu nem perguntasse. Afinal ele pediu
carinhosamente e com aqueles olhinhos pidão para uma moça que se sentaria na poltrona
quase ao meu lado, que trocasse de lugar com ele, com a desculpa de que não se
sentia seguro de sentar a frente nas saídas de emergência.
Depois de algumas horas de voo as pessoas dormindo,
precisávamos conversar baixinho para não incomodar. Então ele resolveu sair de
sua poltrona, inclinar a minha e me empurrando de levinho com seu próprio corpo,
procurando espaço, até achar e se encaixar do meu lado.
“_ Que saudade eu estava de você Rita. O destino
brinca tanto com a gente. Fui ao Brasil e precisei me controlar tanto para não
procurar você, porque eu sabia que não ia querer me ver.”
“_ Querer não é bem a palavra Reis. ” (Disse Rita
suspirando fundo).
‘_ Eu sei que não deveria estar aqui tão perto do
seu corpo, tão perto da sua boca. Como nada se perdeu nesses 8 anos?”
“_ Não se perdeu. Mas também não fomos encontrados
pelo destino.”
Me precavendo para que não acontecesse alguma
besteira, pedi para que ele voltasse a sua poltrona pois iria estudar para minha
palestra. Como um homem sempre muito educado que era, Reis se levantou, beijou
levemente meu rosto e deitou em sua poltrona. Nunca tive uma viagem tão mais longa do que já
era.
No fim da viagem já no aeroporto, e com nossas
malas em mãos, Reis me perguntou onde me hospedaria, pensei cinquenta vezes
antes de dizer.
“_ Vou ficar no Deer Valley, mas só por 2 noites, o
restante estarei na palestra. ”
O terrível foi o responder à pergunta que viria
depois, que foi:
“_ Não terei outra chance de te ver de perto tão
cedo, posso te visitar uma dessas noites? Não disse a ninguém de casa o dia que
chegaria. ”
Não respondi nem pelo sim nem pelo não, disse
apenas tudo o que não gostaria de dizer, o famoso, “ acho que não é certo”. Ele
sorriu com aquele jeitinho lindo de Reis e me disse:
“_ Relutei para não te procurar no Brasil e o
destino me fez encontrar você aqui, não vou lutar contra ele mais uma vez. ”.
Andando para não perder minha carona com os estudantes ouvi ele dizer no fundo,
“eu te encontro”.
Aquele “ eu te encontro” não saia da minha cabeça,
e para ajudar, minha palestra volta e meia dava ênfase ao verbo “encontrar”,
como: “precisamos encontrar novos talentos”, “a música precisa ir de encontro
com o público”, encontrar, encontrar...
Até que se passou os dias e aqueles duas noites que
eu enfim dormiria no Deer Valley chegaram. Aquele resort era encantador, tão
propicio para dormir a dois e eu estava sozinha. Pensei, “vou passar a noite na
festa do resort assim se o Reis aparecer a recepção dirá que não estou no quarto”.
Acabou que eu me deitei na cama e dormi um sono tão profundo que não ouvi nem
festa e nem sinal do Reis. Me aliviei porque achei que ele não viria nessa
outra noite, e mesmo se viesse, minha solução ainda seria a festa. Pois era
festa a semana toda.
Então na outra noite, me arrumei. Coloquei meu
vestido vermelho, com meu casaco branco pois o frio não permitia sair sem
casaco. Desci até a recepção para guardar a chave, inclinada no balcão, e senti
uma mão macia tirando meus cabelos da nuca. Arrepiada logo me virei.
Sim, era o Reis. Todo de preto, com um casaco elegantíssimo
de botões largos e um cachecol fino de charme, soprando suas mãos para
esquenta-las e sorrindo me disse:
“_ Fugindo de mim Rita? ” Com meu jeito “sem graça”
que ele sempre sabia me deixar, respondi:
“_ Muito aquecido, mas esqueceu das mãos. ” Se
chegando até meu ouvido ele disse sussurrando:
“_ Não esqueci, só deixei para aquece-las com o
calor do seu corpo. ”. Inteiramente arrepiada, ergui a mão até o balcão e
peguei de volta as chaves do meu quarto que iria deixar lá.
Subimos o
elevador em silêncio, chegamos até meu quarto, trancamos a porta. E ainda em
silêncio com as luzes apenas do abajur da parede da cama ligado, ele tirava seu
cachecol, seus sapatos, depois seu casaco. Minha respiração estava inteiramente
ofegante, até que não satisfeito, tirou meu casaco, segurou minha mão e me
sentou em uma poltrona de leitura que ficava perto na cama. Tirou meus sapatos e
novamente segurou nas minhas mãos. O chão ainda estava começando a se aquecer,
então um pouco gelado fui andando na ponta dos pés.
Por andar na ponta dos pés tropecei entre o tapete
que rodeava minha cama. E ele me segurou em seus braços. Nossas bocas estavam
coladas e achei que ele me beijaria naquela hora. Foi quando eu senti aquelas
pontas dos seus dedos geladas passando sobre meus ombros e indo a caminho das
minhas costas, abrindo o zíper inteiro do meu vestido vermelho “tomara que caia”.
E então caiu, naquele tapete da cama.
E agora, o dia amanheceu e eu estava ali, naquela
janela. Olhando para ele dormindo e eu com meu café soltando fumaças, vendo
aquelas pessoas descendo para esquiar. Meu pensamento me levou tão longe, que
voltei para terra apenas quando Reis me beijou o pescoço.
Então arrumei minhas coisas e como toda boa viagem
as horas se passavam como contagem regressivas de foguete. A pouco, estávamos eu
e Reis novamente no aeroporto de John F Kennedy. Eu tomando rumo para o Brasil
e ele indo dali para então esperada residência. Em menos de dez minutos, sua
esposa e sua mãe chegaram e o abraçaram com saudades. Éramos dois desconhecidos
daquele momento para frente, levantei da cadeira de espera, com minha mala e
caminhei até minha saída de embarque. Virei levemente para trás, e o vi olhando
para mim com aqueles olhos verdes brilhantes.
Voltei para minha casa, o Brasil, mas novamente após
2 anos me pego aqui, olhando para janela, com gelo derretendo pelo sol, e meu
café com fumacinhas e ele ainda dormindo como um anjinho. Meu pensamento longe
entre o presente e aquele passado, que mais parece semana passada. Uns passos de
quem havia finalmente acorda, me fizeram voltar para terra. Era aqueles olhos.
Olhos verdes de um anjinho, que brilhavam na minha
direção, e com o reflexo agora do nascer do sol e me chamavam.
“Mamãe...”
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